quarta-feira, 16 de abril de 2008

A TÉNÉBREUSE UNITÉ DE UMA POESIA ALÉM

por Cristiano Ramos

Sobre o poeta Everardo Norões e seu livro A rua do Padre Inglês. Uma obra que se propõe ir além


Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Como os ecos ao longe confundem seus rumores
Na mais profunda e tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Harmonizam-se os sons, os perfumes, as cores.

Baudelaire




Para o leitor mais agudo, memórias vividas e lidas se confundem como fotografias misturadas em um baú. Mas, ao mergulhar na vasta poesia contemporânea, não raramente há quem sinta o desolamento de não reconhecer (entre tantos versos) a grandeza daquelas imagens que se destacaram nas leituras de uma vida inteira.


Everardo Norões desenterra de sob os seixos esta razão maior da poesia. A rua do Padre Inglês nos traz um apanhado de sua obra, uma amostra de sua argamassa poética onde se coadunam tradição e moderníssimas demandas existenciais – obra que, por motivos decerto injustificáveis (embora presumíveis), segue desconhecida por tantos.


Uma proposta perpassa todo o livro: recuperar o sentido poético da transcendência. Não aquela de uma conservadora burguesia inglesa imersa em misticismo em pleno século XIX, mas a transcendência clássica, em que estética e filosofia não se deixam reduzir a efêmeros empreendimentos. Os versos de Everardo Norões querem mais, buscam além. Embora nunca uma criação distanciada da paisagem ou dos dramas que a circundam.

O meu país
é uma vereda de loucos.
Linha de serranias
degolando o sol.
cheiro de cana azeda,
a palma de buritis,
relho de sesmarias.
(País)



Leitor e pensador atento de nossa literatura, o autor de A rua do Padre Inglês calcorreia a pauta do dia. Através de sua postura convicta, dialoga com questões atualíssimas de nossa produção. Não foge, por exemplo, ao desafio que hoje nos impõe a ruptura modernista: como não negar a herança e, ao mesmo tempo, fugir da armadilha de tradicionalizar o que antes foi inovação contestadora, transgressão? Embora Norões dificilmente aceitasse a comparação, visto que rejeita a própria noção de pós-modernismo, seus poemas vencem com enganosa facilidade esse obstáculo.


Eis fragmento onde enfrenta a pergunta que costuma afundar pencas de jovens poetas em cansativas tentativas visuais, lugares-comuns ou gritos inócuos:

O que será de mim
no sossego dessas praças mortas,
na angústia dos estacionamentos,
no frio das salas de espera,
quando o outro,
o sempre múltiplo,
pergunta:
O que será de ti?

O que será de mim
quando os besouros esquecerem
as lâmpadas dos postes
ou o vento passar sem varrer nossas cinzas?
(As réstias de muxarabiê)



Mas esqueçamos os rótulos ou debates categorizantes. O que pesa são suas imagens, além do demasiado humano. Nenhum baú, por mais vasto e rico, amontoará com indiferença os seus fractais, que se nos apresentam com assustadora elegância: “Pelo mergulho / das sombras, / calculo / o itinerário da luz”.


São versos que requerem do leitor um ritmo, respeito às intenções sonoras, e tempo para dar nitidez aos significados. Pressa ou pobreza na entrega resultará em desperdício da obra. Assim como, aos interessados em buscar o significado das tantas referências presentes no texto, a experiência de cada página pode se desdobrar em inúmeras outras descobertas. Ex-exilado político, Norões foi obrigado a conhecer outros países, descobrindo-se um irremediável interessado nas mais diversas culturas. Durante todo o livro, somos convidados a viajar com o autor, principalmente por referências orientais, como nas belas estrofes dedicadas àquela conhecida como a maior das cantoras árabes:

Era como se um Deus houvesse sucumbido
e uma única mulher lamentasse seus remorsos.
E o céu brilhasse, entre as areias,
nas cinzas de seus ossos.

Era como se um Deus houvesse caminhado
no fio dos sentidos, e ao seu lado
um peregrino cego lhe guiasse
e, súbito,
calasse.

Era como se um Deus houvesse se encontrado
na única pedra de um deserto.
E ao sol nos doasse
a outra face.

(Oum Kalsoum)


Por tudo isso, o próprio poeta cria exigências à sua obra. Não lhe cabe mais captar o instante sem maiores intenções, ou se desviar da grandeza que os versos parecem lhe exigir. Daí, destoa uma peça como Vinho Branco Seco (“Entre o silêncio obsceno / e o cálice de vinho seco / perco-me na sede / do teu asco”). Mesmo que sejam motivos e imagens dignas de atenção, há inúmeros outros autores para lhes perpetuar a imagem e repetir fórmulas.


Todavia, qualquer “senão” apenas ressalta todo o mais. Uma poesia que nos traz a densa atmosfera baudelairiana, as desconcertantes correspondências, a metafísica comprometida com nossas infindáveis lacerações. Aquele acostumado com essa ténébreuse unité, reencontrará neste pernambucano-do-mundo aquele negativismo, a sombria decadência onde não existem copas ou telheiros para nos resguardar. Momento nenhum de Everardo Norões há de acalentar espíritos desejosos por uma temporada no Paraíso. O que não quer dizer que, envoltos em “sombra” e “escuridão", seus versos nos compelem a desistir. Antes, lançam-nos à caminhada dostoievskiana, onde o coração humano é o campo de batalha, certos de que a dor apenas ratifica nossa existência e sublinha o que de sensível ainda nos acompanha.

Agonizam os rastros de novembro.
E os meus ossos, cansados das neblinas,
doíam, no concerto das esquinas
da cidade, onde um dia, ainda me lembro,

Penetrou-se de escuro a minha alma,
quando um cão, a ladrar contra o sol-posto,
mordeu o lado oculto do meu rosto
e deixou seus sinais à minha palma.

(Soneto I)



“Na linha negra que decepa o sol trafegam infinitas palavras”... E estas linhas são afiadas, este sol é fecundo. Não de forma imprudente – embora com o entusiasmo típico dos textos de apresentação e prefácios – Marco Lucchesi afirma que “seria preciso escrever quase um ensaio para dizer as afinidades que nos cercam e transcendem, as palavras muitas que guardamos e os silêncios que transmitimos”. Todavia, nem a mais fria análise seria indiferente ao empenho autêntico de Everardo Norões em acrescentar, não se rendendo às correntes e modismos.

Em tempos de antologias circulares e redes de afinidades que confundem crítica com reverberação laudatória, difícil esperar que o autor de A rua do Padre Inglês conquiste maiores espaços, senão nos amplos átrios de consciências desejosas em extrair dos contraditórios o melhor da produção contemporânea.


Cristiano Ramos é jornalista e crítico literário. Editor deste blog, além de diretor e apresentador do programa Opinião Pernambuco.

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